Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou relevante discussão, a partir do voto conjunto do ministro relator Gilmar Mendes, referente à necessidade de incentivos para a celebração de Acordos de Leniência[i] entre colaboradores e autoridades públicas. Tais incentivos estariam intimamente relacionados a necessidade de se garantir segurança jurídica para os colaboradores, transparência, bem como uma atuação coordenada dos órgãos de controle para evitar o bis in idem, ou, ainda, a condenação de indivíduos com base em fatos relatados às outras autoridades em sede de acordos.
O debate teve início a partir do ajuizamento de Mandados de Segurança em face de acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU), formalizados em tomadas de contas especiais, os quais resultaram na aplicação – ou ameaça de aplicação – de sanção de inidoneidade, com base no art. 46 da Lei 8.443/1992.
No MS 35.435, a discussão era: apesar de a Andrade Gutierrez ter celebrado acordos de leniência com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e com a Controladoria Geral da União (CGU), o TCU teria indicado a possibilidade de declarar a inidoneidade da empresa pelos mesmos fatos já reportados às autoridades públicas em sede de acordos. Segundo o TCU, tal possibilidade decorreria da competência constitucional do tribunal, independentemente de a empresa ter firmado Acordos de Leniência.
Por sua vez, no MS 36.496, a UTC Engenharia S.A. indica que, apesar de ter celebrado acordo com a Advocacia Geral da União (AGU) e a CGU, que previa a isenção da aplicação da pena de inidoneidade, o TCU, ao julgar o TC 016.991/2015-0 declarou a inidoneidade para contratar com a Administração Pública pelo período de cinco anos.
A discussão é extremamente importante e traz à baila relevante problema criado em nosso ordenamento jurídico a partir da aprovação precipitada de legislações que preveem Acordos de Leniência. A primeira delas foi a antitruste, instituída por meio da Lei 10.149/2000. Em 2013, diante das manifestações populares, emergiram açodadamente outros Programas de Leniência, aprovados no contexto de insatisfação: a Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013) e a Lei de Organização Criminosa (12.850/2013). Nesse mesmo sentido, em 2017, foi promulgada a Lei sobre Crimes no Sistema Financeiro (13.506/2017), que instituiu o Programa de Leniência no âmbito do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O desenvolvimento disforme de inúmeros Programas de Leniência acabou por trazer insegurança jurídica aos que desejam colaborar, pois a premissa de sair de uma negociação “melhor do que entrou” não é verificável. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, os colaboradores devem celebrar acordos com cada uma das autoridades que possam investigar o fato ilícito. Ou seja, em alguns casos, como se viu na Lava Jato, existem cinco autoridades que poderiam ser competentes para analisar a mesma prática ilícita. A ausência de uma atuação coordenada desses agentes pode, ao cabo, importar significativa insegurança jurídica para o administrado.
Segurança jurídica, transparência e previsibilidade são vistos pela doutrina como um dos pilares dos Programas de Leniência. Garantir aos indivíduos previsibilidade nas negociações é essencial. O Estado tem que atuar de forma coordenada, evitando sanções com base em fatos relatados à outras autoridades, sob pena de desestimular a celebração destes acordos.
Os ilícitos investigados por intermédio dos programas são aqueles que sejam, reconhecidamente, de difícil detecção ou investigação, dado o caráter sigiloso e fraudulento, baseado na lei do silêncio entre os participantes (Ommerta) e, também, na supressão e destruição de provas. A obtenção de bons resultados depende da existência de mecanismos de incentivos para que o agente econômico envolvido em ilícitos exponha os fatos.
Do ponto de vista estatal, os incentivos para instituição de Programas de Leniência são diversos, mas envolvem desde a detecção de práticas ilícitas, a obtenção de provas, uma maior eficiência e efetividade investigativa, a cessação da infração que está sendo praticada, a possibilidade de sanção dos demais infratores, a reparação, o ressarcimento de danos e a dissuasão de práticas ilícitas futuras. A importância é notória, sendo um exemplo empírico desta conclusão a própria Operação Lava Jato, que conseguiu se desenvolver, em grande medida, graças a eficiência deles – posição defendida, inclusive, em estudo técnico do Ministério Público Federal.
Ou seja, para um programa ser realmente efetivo e capaz de impedir a formação de novos ilícitos – por exemplo, os carteis – ele deve propiciar ao colaborador, entre outros aspectos[ii], os requisitos, procedimentos e benefícios esperados. Significa dizer que tais programas precisam ser caracterizados pela transparência, previsibilidade e segurança jurídica em torno das negociações e assinatura do acordo.
Garantir segurança jurídica àqueles que queiram colaborar com o Estado é, talvez, o principal pilar para estruturação de um efetivo Programa de Leniência. A necessidade de o administrado ter ciência das sanções que lhe são passíveis de serem aplicadas, bem como dos benefícios esperados, é ponto central. Agentes que optarem por colaborar com o Estado precisam ter certeza quanto ao gozo das vantagens previstas na legislação, especialmente, aquelas relacionadas a não condenação pelos ilícitos reportados.
Programas de Leniência que não conferem segurança jurídica aos agentes que delatarem tendem a ser ineficientes no combate de crime organizado. A segurança jurídica, por exemplo, foi ponto fulcral para o desenvolvimento do Programa de Leniência Estadunidense. O agente precisa ter certeza, ao menos, dos potenciais benefícios que obterá com a celebração do acordo e a garantia, por parte da autoridade, que o contrato celebrado será cumprido. Nada é mais danoso para credibilidade de um Programa de Leniência que eventuais alterações, pelo Estado, dos benefícios ao colaborador[iii].
Portanto, não causa estranheza o voto do ministro Gilmar Mendes, que limitou a possibilidade de o TCU impor sanções de inidoneidade às empresas que tivessem celebrado Acordos de Leniência com base nos mesmos fatos investigados pelo tribunal. A aplicação desta sanção por este órgão de controle não seria “compatível com os princípios constitucionais de eficiência e segurança jurídica”.
Surge então, nesse contexto, a necessidade de comunicação perene entre os órgãos de controle. A comunicação é crucial para o bom desenvolvimento desses programas, tendo importantes autores que, inclusive, chegam a defender a necessidade de existir um balcão único para negociação[iv]. A existência de um balcão único poderia, de fato, garantir aos administrados maior segurança jurídica, visto que poderia proporcionar aos indivíduos possibilidade de negociar de forma ampla e irrestrita, com todos os órgãos de controle, um acordo único que lhes garantiria imunidade – ou redução de sanção – e que permitisse que o indivíduo virasse a página em relação aos ilícitos praticados.
A ideia é louvável e tem potencial inquestionável de efetividade, mas carece de inovação legislativa, fato que, no Brasil, demanda tempo e vontade política. Enquanto ela não ocorre, é imperativo que a comunicação perene entre os órgãos de controle se mantenha a garantir segurança jurídica aos colaboradores e, também, o alinhamento institucional entre as autoridades, como exposto pela doutrina[v].
Em voto supracitado, o ministro Gilmar Mendes destaca a importância da comunicação entre as autoridades envolvidas. “Se tal sobreposição fática não for considerada de forma harmônica, sobreleva-se o risco de determinada empresa ser apenada duas ou mais vezes pelo mesmo fato, a despeito de não ser evidente a pluralidade de bens jurídicos tutelados pelas distintas esferas de responsabilização. (…) Para além do debate sobre ocorrência de bis in idem, uma perspectiva punitiva não coordenada dos regimes de responsabilidade cível e administrativa gera riscos à própria efetividade do sistema anticorrupção”.
Por fim, em virtude do desenvolvimento disforme das legislações sobre o tema, tornou-se imprescindível que os órgãos de controle promovam uma comunicação constante sobre os Programas de Leniência, evitando-se assim sanções cruzadas que possam inviabilizá-los. Tal comunicação se faz necessária, já que não foi possível, até o momento, estabelecer do ponto de vista legislativo o balcão único para negociação de Acordos de Leniência no Brasil.
O Estado, a par dos diferentes órgãos de controle, precisa atuar de forma concertada e conectada para atingir o principal objetivo: desmantelar organizações criminosas e possibilitar a sanção dos demais investigados na prática ilícita. Deve-se proteger, nesse contexto, aquele que optou por colaborar com o Estado. Para o colaborador, é indiferente de onde vem a sanção, pois, ao final, ela será paga do mesmo bolso.
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[i] Como feito por ATHAYDE (2019), utilizaremos da expressão Acordo de Leniência para referir-nos aos acordos celebrados entre uma autoridade pública investigadora – seja ela o MP, o CADE, a CGU, CVM, entre outros – e um agente privado que cometeu um ilícito. Por intermédio deste acordo, o agente privado receberá algum tipo de benefício na sanção que seria esperada – seja uma imunidade total, seja abrandamento da potencial punição – ao passo que a autoridade receberá provas e uma descrição de como se deu o ilícito. ATHAYDE, Amanda. Manual dos Acordos de Leniência no Brasil. Teoria e Prática. Editora Forum. 2019.
[ii] RUFINO, Victor Santos. Os Fundamentos da Delação: Análise do Programa de Leniência do Cade à Luz da Teoria dos Jogos. 2016. Universidade de Brasília; e ICN, Anti-Cartel Enforcement Manual. Drafting and implementing an effective leniency policy. 2014 P.5
[iii] A incerteza quanto ao efetivo desfrute das vantagens oferecidas é apontada como um fator determinante para o passo lento que o programa de leniência norteamericano seguiu entre o ano de sua criação, 1978, e sua reformulação em 1993 (KOBAYASHI, 2001, p. 2-3). Nesse primeiro período, as autoridades do DoJ, recebiam, em média, uma aplicação para leniência por ano. Após a reformulação, tais números passaram a ser de uma por mês (MOTCHENKOVA, 2004, p. 2). Uma das reformulações mais significativas operadas em 1993 – considerada causa essencial do sucesso dos anos posteriores – foi a mudança de paradigma sobre a expectativa de gozo dos benefícios da delação. Até então, o grau de imunidade oferecido variava de acordo com a discrição do procurador responsável pelo caso e somente era conhecido após um balanço feito ao fim da colaboração (HAMMOND, 2000). O potencial delator, desta forma, embora conhecesse as regras do programa e a existência de vantagens na adesão, não sabia com exatidão quais os termos finais.
[iv] MACEDO, Alexandre Cordeiro; SANT’ANA, Raquel Mazzuco. Balcão único para negociação de Acordos de Leniência no Brasil. SSRN Electronic Journal, v. 23529, p. 1– 36, 2019, p. 32
[v] “Diante da atuação concomitante de diversas instituições públicas no âmbito da negociação e celebração de Acordos de Leniência Anticorrupção, com a condução de processos administrativos, civis e penais, eventualmente até nas esferas federal, estadual e municipal, as instituições competentes devem adotar um comportamento cooperativo. Se aqueles que praticam os atos de corrupção atuam de modo organizado, as instituições públicas também devem atuar de modo organizado para enfrentar os ilícitos de corrupção”. (ATHAYDE, 2019).