Em 11 de janeiro de 2023 o Brasil acordou com a notícia de que uma das suas principais empresas estaria, há anos, apresentando relatórios contábeis com inconsistências financeiras significativas e que totalizariam um rombo da ordem de vinte bilhões de reais. Diante de tais fatos, os papéis da companhia passaram por um processo de derretimento, tendo perdido cerca de 92% do seu valor. Em paralelo, diversos credores passaram a conseguir bloquear valores significativos da companhia, o que colocou em risco a própria manutenção da atividade empresarial.
Em 13 de janeiro, a justiça do Rio de Janeiro determinou liminarmente a proibição de novos bloqueios nas contas da companhia, haja vista que tal fato poderia levar à falência da companhia. Tal posicionamento está em consonância com o quanto julgado pelo Superior Tribunal de Justiça no âmbito do CC 149.798 de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, em que se pontuou que o objetivo da preservação da empresa pode impedir, por exemplo, a busca e apreensão de bens considerados necessários para as atividades produtivas, isso porque, apesar da inadimplência, a constrição dos bens prejudicaria a eventual retomada das atividades da empresa.
Já em 19 de janeiro, as ações da companhia foram retiradas dos principais índices, quais sejam: IBOV, IGCX, ICO2, ICON, IBXX, IGCT, IGNM, IBRA, IVBX, ISEE (ISE B3), ITAG, SMLL, IBXL e GPTW. Sem alternativa, a companhia iniciou um processo de recuperação judicial – o que revelaria um quadro financeiro ainda mais catastrófico. Ao todo, as dívidas da Americanas chegam a cerca de quarenta e sete bilhões de reais, englobando cerca de oito mil credores. Trata-se da quarta maior recuperação judicial da história no país.
Do total do valor, tem-se que a dívida com instituições bancárias totaliza cerca de vinte e oito bilhões de reais, dos quais dois bilhões são referentes a dívidas com Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o BNDES. Algumas grandes empresas, como Google, Apple, Facebook, fabricantes de televisores e computadores também possuem dívidas que somadas se aproximam de dois bilhões de reais. Além disso, parcela diversos elos e agendes de menor porte ou hipossuficientes também foram atingidos. Verificam-se dívidas da ordem de cento e dez milhões de reais com micro e pequenas empresas, além de débitos trabalhistas de aproximadamente sessenta e cinco milhões. Uma curiosidade das dívidas da Americanas especificadas em seu pedido de recuperação judicial se dá especificamente no setor de chocolates. De fato, as principais marcas de chocolates do país, dentre as quais Nestlé, Mondelez, Hershey’s, Ferrero e Arcor, são credoras de mais de quatrocentos milhões de reais da empresa varejista. Vale lembrar que se trata da maior rede varejista de ovos de Páscoa e faltam poucos dias para desfrutarmos de tal momento. A preocupação dos chocólatras só aumenta. Mas não é só, hoje o referido grupo gera mais de 100 mil empregos diretos e estima-se que mais de 50 milhões de pessoas são consumidores ativos dos serviços prestados pelo grupo.
Não é difícil supor que dada a dimensão do referido conglomerado, que diversas questões jurídicas serão enfrentadas ao longo do processo de recuperação judicial. Questões envolvendo eventual responsabilidade de acionistas e diretores da companhia, seja em âmbito cível e penal, em ambiente nacional e internacional, certamente virão à tona. Não é difícil imaginar que teremos discussões envolvendo o papel da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) na discussão, bem como uma possível responsabilização da B3 pela obrigação de esta garantir a higidez do sistema. Discussões envolvendo contencioso cível, contencioso trabalhista, dentre outras áreas do direito serão realidade em curto espaço de tempo. A responsabilidade das empresas de auditoria e seu papel para garantia da higidez do sistema financeiro virão, certamente, à tona.
É nesse contexto que não parece ser difícil crer que, eventualmente, a política concorrencial também tenha que se debruçar sobre o caso. De fato, não é incomum que mormente diante de uma eventual aquisição parcial ou total da dos ativos de uma empresa em crise seja realizada por um rival ou por um player integrado em sua cadeia produtiva,1 dando origem a uma concentração econômica – que inclusive pode vir a ser justificada pelas partes com base na teoria de failling firm.
A teoria (ou defesa) da failling firm trata-se de um recurso de argumentação que firmas insolventes em concentração utilizam para justificar sua concentração por outras empresas, haja vista que eventual falência poderia gerar ineficiências superiores à perda de competitividade decorrente da fusão, especialmente considerando os custos administrativos de uma falência e a redução de outputs ao mercado derivados de sua saída.2
De fato, não se trata de uma tese irrestrita, a exemplo do que dispõe o Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), ao estabelecer como parâmetros para utilização dessa defesa: (i) a saída da empresa do mercado ou a impossibilidade de cumprimento de suas obrigações com credores, a partir da reprovação da operação; (ii) a remoção dos ativos da empresa do mercado, reduzindo a oferta e o bem-estar de consumidores, a partir da reprovação da operação; e (iii) a demonstração de esforços da empresa na busca por alternativas com menor dano à concorrência e a ausência de opções para sua continuidade, senão a operação.3
Parece, assim, ser inegável que, ao adotar essa tese, invariavelmente autoridades concorrenciais podem optar por flexibilizar a proteção ao ambiente concorrencial, em prol de um movimento concentracionista de mercados, direcionado tanto à manutenção da atividade empresarial e a sua função social da empresa quanto à proteção de credores em seu sentido mais lato – o que também compreenderia a garantia do bem-estar do consumidor, enquanto paradigma dominante para o norteamento da política concorrencial ao redor do mundo. Ocorre, contudo, que em um cenário de grande debate acerca objetivos da política concorrencial, como o que presenciamos atualmente, repensar teses como a failing firm defence pode se tornar um desafio a aqueles que buscam disputar um novo paradigma a orientar as escolhas de policy na regulação da competitividade dos mercados.
Sobre isso, ao longo dos últimos trinta anos, a política concorrencial navegava em calmas águas. Após a consolidação do bem-estar do consumidor como único objetivo a ser perseguido pelo na regulação da concorrência, como postulado pelos principais nomes da Escola de Chicago como Robert Bork e Richard Posner, não parecia haver problemas que as autoridades concorrenciais não resolveriam com as ferramentas existentes. De fato, a concentração do poder econômico poderia ser resumida, pela ótica chicaguiana, nas relações lineares entre produtores e consumidores, onde outros aspectos estariam fora do escopo da tutela concorrencial. Além disso, não parecia haver dilemas que a teoria tradicional do antitruste também fosse incapaz de solucionar. O instrumental dado pela economia neoclássica, especialmente com a teoria do preço, a partir desse objetivo, orientaria assim o enforcement concorrencial não só nos EUA, mas também no restante do mundo, especialmente a partir dos anos 1990s, como exemplificado pelo caso brasileiro.
A calmaria que navegávamos, entretanto, começou a passar. Tumultos seriam criados por novas correntes e fomentados por grandes crises colocaram em xeque nossas certezas acerca da estruturação da governança econômica como um todo. Desde o pós-crise de 2008, ecos contrários à ideia de que a concentração industrial seria indesejável, tanto por motivos econômicos quanto por motivos políticos. Vozes, assim, passaram a ecoar pela necessidade de mudanças nos padrões de análise, a utilização de métricas qualitativas, bem como a ponderação pela utilização de novos princípios a orientar a política concorrencial. Esse processo foi fortemente catalisado pela consolidação de mercados digitais em torno de verdadeiros titãs modernos, tornando-se players com significativo poder econômico e, para além disso, capacidade ímpar de impactar a sociedade para critérios além daqueles usualmente capturados pela ótica restrita da tradição welfarista consolidada no direito concorrencial.4
Esse grupo de críticos busca, assim, romper com esse paradigma, sustentando o propósito da política concorrencial é defender o processo competitivo em si, e não um valor extrínseco como a ideia de ganhos de eficiência. Essa agenda, também denominada de neobrandeisiana, propõe não apenas uma reorientação de princípios, retomando a natureza política do antitruste, mas também a revisão de diversas características do enforcement concorrencial ao longo das últimas décadas.5 É justamente nesse contexto que a reavaliação de algumas teses consolidadas, como a failing firm defence podem sofrer com a repercussão dos debates em torno de novos paradigmas orientadores da política concorrencial.
Três caminhos parecem se desenhar no horizonte desse conflito. Em primeiro plano, pode haver uma abordagem de manutenção do estado atual da failing firm defence. No entanto, em um cenário onde nomes da agenda neobrandeisiana, como Tim Wu, Lina Khan, Rohit Chopra e Jonathan Kanther, passam a compor a administração antitruste de Joe Biden, propondo drásticas reformas em aspectos centrais do enforcement da política concorrencial, esse cenário parece pouco provável.
Em segundo lugar, em prol da ideia mais ampla de defesa do processo competitivo dos mercados, promovida por esse grupo de críticos, a teoria da failing firm poderia ser completamente rechaçada. Vale ressaltar que a defesa da competitividade dos mercados em aspecto mais ideal enquanto orientador do antitruste pela agenda neobrandeisiana pode tomar contornos bastante estritos – a exemplo da Chairwoman do FTC, Lina Khan, ao discutir recentemente medidas de ESG, afirmando que o antitruste não nos pede “para escolher entre bons ou maus monopólios”, mas “enfrentar a redução da concorrência”, de maneira que “não podemos agir como negociantes, permitindo a sua redução em um determinado mercado em troca de algum compromisso ou benefício não relacionado em outro”. Assim, há pouco ou nenhum espaço para flexibilizações da concorrência em prol de benefícios alheios ao próprio processo competitivo da economia.
Por fim, um terceiro caminho é a remodelação dos critérios para a adoção desse tipo de tese em defesa de concentrações empresariais. Recentemente, os congressistas democratas Elizabeth Warren, Bernie Sanders e Jan Schakowski encaminharam um ofício a Jonathan Kanther (chefe da Antitrust Division do DOJ) e Lina Khan a respeito da proposta de aquisição da Albertsons Companies, Inc. pela Kroger Company’s – também no setor de varejo. Já antecipando uma possível defesa de failing firm, o ofício alerta que uma possível aquisição beneficiaria antes os majoritários da Albertson, um consórcio de investimentos imobiliários com aproximadamente 70% de participação na empresa – o que deveria ser ponderado com os reais impactos da concentração sobre o processo competitivo, com efeitos sobre trabalhadores, consumidores, pequenos negócios e a economia como um todo. Note-se que esse tipo de análise pode forjar uma abordagem distinta sobre a temática, conciliando-a com a agenda proposta pelos neobrandeisianos ao buscar compor a análise concorrencial com outros potenciais stakeholders da concentração do poder econômico – em diálogo com os objetivos finais da própria noção de proteção de tais credores no processo de falência.
Ainda que o CADE e o estado da política concorrencial no Brasil pareçam estar longe desse grupo, seja pelas críticas por eles propostas seja por sua agenda de reformas, a inflexão pode trazer insights distintos sobre a failing firm defence. Curiosamente, em um cenário onde até mesmo os defensores do paradigma do bem-estar do consumidor assumem a possibilidade de estender a tutela concorrencial para proteger restrições de outputs em mercados de trabalho, por exemplo,6 redimensionar os efetivos beneficiários de concentrações resultantes da tentativa de liquidação de empresas em crise, ao lado dos objetivos mais amplos da Lei de Falências e Recuperação Judicial, que podem passar a ter um relacionamento em muito distinto com a failling firm defence.7
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1 Conferir: Stuart Gilson; Edith Hotchkiss; Matthew Osborn. Cashing out: The Rise of M&A in Bankruptcy. Harvard Business School Working Paper, Cambridge, n. 15-057, 2015.
2 Conferir: HOVENKAMP, Herbert. Federal Antitrust Policy: The Law of Competition and Its Practice. St. Paul: West, p. 700-703.
3 BRASIL. CADE. Guia para análise de Atos de Concentração horizontal. Brasília, 2016, p. 55. Em sentido bastante similar são as Horizontal Merger Guidelines da Federal Trade Commission (FTC) e do Department of Justice (DOJ) dos EUA e as Guidelines on the assessment of horizontal mergers under the Council Regulation on the control of concentrations between undertakings da Comissão Europeia.
4 Para um panorama dessa crise, bem como as principais vertentes oriundas dessa discussão, conferir: NEWMAN, John. Reactionary Antitrust. Concurrences, Paris, n. 4, p. 66-72, 2019.
5 Conferir, para um resumo dessa agenda: WU, Tim. The Utah Statement: reviving antimonopoly traditions for the era of big tech. OneZero, São Francisco, 18 de nov. de 2019.
6 Conferir: MARINESCU, Iona; HOVENKAMP, Herbert J. Anticompetitive Mergers in Labor Markets. Indiana Law Journal, Bloomington, v. 94, p. 1031-1063, 2019.
7 Nesse contexto, estabelece o art. 47 da Lei de 11.101/2005, que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. De fato, como apontado pela Ministra Nancy Andrighi na ocasião do julgamento do CC 149.798, “não se pode perder de vista o objetivo maior, de preservação da empresa, que orientou a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, da regra do artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/05. O que buscou o legislador, com tal regra, foi implementar a ideia de que a flexibilização de algumas garantias de determinados credores, conquanto possa implicar aparente perda individual, numa análise imediata e de curto prazo, pode significar