Recentemente foi realizada no STF audiência pública que versou sobre a responsabilidade civil das plataformas, nos termos do art. 19[1] do Marco Civil da Internet. Segundo este, as plataformas somente serão responsabilizadas por conteúdo de terceiro se não obedecerem a algum comando judicial que imponha a retirada do conteúdo ou a adoção de alguma medida alternativa.
A discussão centrou-se em três eixos[2]: (i) constitucionalidade do artigo 19[3]; (ii) Inconstitucionalidade[4]; (iii) constitucionalidade mediante interpretação conforme[5]. Salvo na hipótese de se reconhecer a constitucionalidade do artigo, é possível concluir que haverá algum grau mitigação ao princípio da liberdade de expressão.
A questão que se coloca é se essa restrição seria desejável ou não. Em nossa visão, para além de justificável e desejável, como bem aponta Frazão (2023)[6], o argumento daqueles que defendem o oposto é de que “qualquer tentativa de regulação do fluxo informacional na internet ou de responsabilização legislativa ou judicial das plataformas por conteúdos de terceiros apresentaria sérios riscos de restrições indevidas à liberdade de expressão e mesmo de censura”. Trata-se de uma leitura simplista e rasa.
A limitação de um determinado princípio em nosso ordenamento jurídico não é novidade. Não apenas princípios foram limitados, mas a própria propriedade privada possui limitações e não pode ser exercida em prejuízo à sociedade, como aponta Comparato (2013, P.98)[7]
Em outras palavras, eventual regulamentação às plataformas – a qual precisa ser muito bem avaliada, com seus impactos regulatórios analisados, não corresponde a limitar um princípio a ponto de extingui-lo, mas de limitá-lo em alguma forma diante da existência de outros valores que são ainda mais relevantes. Segundo Frazão (2023), inclusive, seria justamente a ausência de regulação, atrelada a ausência de responsabilização das plataformas que colocaria em risco a liberdade de expressão, vejamos: o real risco para a liberdade de expressão decorre precisamente da ausência de regulação ou de responsabilização das plataformas.
Ainda que nossa história, no período ditatorial, tenha sido maculada por um momento de nítido cerceamento, ou extinção, da liberdade de expressão, não parece ser razoável que a frenética defesa desse princípio para justificar exatamente o que ele buscava proteger, o Estado democrático de Direito. Não se pode admitir uma liberdade incondicionada sem a observância de um dever de cuidado com aqueles que publicizam as informações.
Nota-se que a própria legislação já limita à “liberdade de expressão”, quando estabeleceu que as plataformas são obrigadas a remover conteúdo, sem interpelação judicial, quando houver divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais[8].
O que se discute agora é, justamente, a extensão deste rol de condutas que demandariam essa atuação positiva, responsiva e conforme das plataformas, o que careceria de intervenção do Legislativo para definir objetivamente essas hipóteses[9].
Tal tarefa, contudo, não é fácil ou trivial, existindo situações que estariam numa zona cinzenta, marcada por grande complexidade e subjetivismo. Nesse sentido, como apontou o Google[10], 30% das sentenças que determinam a remoção de conteúdos são revertidas em grau de apelação e 50% das ações judiciais para remoção de conteúdo do YouTube são julgados total ou parcialmente improcedentes.
A tarefa de limitar o conteúdo e o alcance de conteúdos produzidos por terceiros é, de fato, complexa, não se podendo imputar às autoridades qualquer inaptidão no desempenho das suas atividades, mas sim de que a análise de conteúdos ilícitos é difícil até mesmo para aqueles que criam e aplicam as regras do jogo, imagine-se então para os players do mercado.
Dada a essa dificuldade, o presidente da Frente Parlamentar da Economia e Cidadania Digital, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), ao defender a constitucionalidade do artigo, expôs que o “anseio de conter danos à honra, à imagem das pessoas na internet, e sim, a necessidade de desafogar o Poder Judiciário, não são suficientes para constitucionalizar a delegação para a plataforma digital do juízo de valor que necessariamente precede o ato judicante”.
Essa mudança de eixo para responsabilizar as plataformas, segundo o deputado, criariam incentivos para (i) se presumir a ilegalidade de todo conteúdo controverso; (ii) desestímulo ao comportamento responsável dos usuários; (iii) consequências ao judiciário, que lidarão com inúmeras ações judiciais de indenização contra as plataformas.
Os que discordam da constitucionalidade do art. 19 o fazem seguindo a lógica de que o regime de responsabilização atual não fornece tutela adequada à pessoa humana, especialmente diante da lentidão judicial[11].
De fato, o dano já foi feito, mas é questionável se a mera responsabilização irrestrita das plataformas, sem se atentar para inúmeros outros fatores que devem ser incorporados na análise de impacto regulatória, seria a solução mais adequada para corrigir essa situação. A discussão sobre a constitucionalidade do art. 19 não deve ser confundida com a simples responsabilização das big techs[12]
Ao fim e ao cabo, teremos que assumir que, em verdade, a discussão foca a fórmula de bhaskara e se esquece de aritmética básica: como endereçar a responsabilidade neste caso de plataformas? Se receber uma carta no correio que me diz uma mentira, não vou dizer que o carteiro é o culpado por isso[13].
[1]
Lei 12.965/2014, […] art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
[2]
Houve ainda aqueles que não se posicionaram, restando neutros: Os representantes da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), do Diretório Nacional do PT, do GetEdu.
[3]
Foi o caso dos representantes do Facebook Brasil, da Google Brasil, da Presidente da Frente Parlamentar da Economia e Cidadania Digital, do Twitter, do TikTok, da Fundação Wikimedia, Mercado Livre, da Associação Brasileira de Internet (Abranet), da Federação das Associação das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional), da Associação Brasileira de Provedores de Internet e Telecomunicações (Abrint), do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP), Comissão de Tecnologia e Inovação da Seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Artigo 19 Brasil, Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), do Instituto de Liberdade Digital e da Faculdade de Direito/Mackenzie, da InternetLab, do Rede de Direito Civil Contemporâneo, do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Escola de Direito da FGV/SP.
[4]
Como os representantes da Recorrida no Tema 987, da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), da Associação Nacional de Jornais (ANJ), do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), da Clínica de Responsabilidade Civil da UERJ, do Instituto Internet no Estado da Arte (ISTART) e Instituto Norberto Bobbio (INB), da Associação Nacional dos Editores de Revistas (ANER).
[5]
Sendo o caso dos representantes do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, do Ministério de Estado da Justiça e Segurança Pública, da Secretaria de Telecomunicações Ministério das Comunicações, da Procuradoria Nacional da Uniao de Defesa da Democracia da AGU, do Ministério das Mulheres, Associação Brasileira de Comunicação Pública (ABCPública), do Instituto Alana, da Confederação Israelita do Brasil (Conib), do Legal Grounds Institute, da Associação Brasileira de Centros de Inclusão Digital (ABCID), do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), do Centro de Tecnologia e Sociedade FGV Direito Rio, da Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abratel),
[6]
FRAZAO, ANA.
Regulação de conteúdos em plataformas digitais Não invoquemos a liberdade de expressão em vão.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/regulacao-de-conteudos-em-plataformas-digitais-22032023
[7]
“
O desenvolvimento da economia capitalista ficou patente que a propriedade não podia permanecer como direito absoluto. Os danos causados pelas empresas – aos trabalhadores, consumidores, ao bem comum da coletividade – estavam a exigir uma reação do Poder Público. Essa reação foi sendo organizada e aplicada em diferentes etapas, desde o início do século XIX, com a expansão do capitalismo industrial, para desembocar finalmente, no século XX, com a concepção da chamada “função social da propriedade”.
[8]
Lei nº 12.965/2014
, […] Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
[9]
Neste ponto, houve divergência por parte de Rodrigo Xavier Leonardo. O representante da Rede de Direito Civil Contemporâneo apontou que novas hipóteses poderiam ser determinadas pelo próprio STF.
[10]
Conforme apontado pelo Representante da Google, Guilherme Sanchez
[11]
João Quinelato, do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil), defendendo uma interpretação conforme do artigo, destaca a morosidade judicial, citando a Ministra Ellen Gracie nos autos da ADPF 130 “a busca tardia pela reparação da honra injustamente ultrajada é o esforço correspondente aquele de recolher as plumas de um travesseiro lançado do alto de um edifício”.
[12]
Como assinalado por Carlos Affonso Souza, da Associação Brasileira de Internet (Abranet). O desenho regulatório deve considerar a grande abrangência do ecossistema que circunda a internet brasileira para que não se caia na armadilha metonímica de se traçar padrões regulatórios para parte (big techs) e deturpar o todo, do qual fazem parte pequenas empresas como startups
[13]
Conforme bem questionado pelo representante do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), Demi Getschko.