A urgência de se evoluir no debate do PL 2630/20

28/04/2023

Artigo por:

Luiz Guilherme Ros e Gabriel Figueira Andrade

No fim de março, nos dias 28 e 29, foi realizada audiência pública no Supremo Tribunal Federal cuja discussão versou sobre o modelo regulatório a ser imposto às plataformas, especialmente no que se refere à responsabilização por conteúdos gerados por terceiros. O tema não poderia ser mais atual, mormente após os tristes acontecimentos que chocaram a sociedade e o cenário midiático brasileiro.

As últimas semanas foram marcadas por denúncias e concretizações de massacres em escolas, o que levou o governo federal a editar, no último dia 6, uma série de medidas que compõem o programa Escola Segura[1]. Não abordaremos individualmente nenhum dos casos, nem mencionaremos quaisquer informações adicionais, justamente para que os atrozes agressores não ganhem notoriedade com os massacres praticados, em alinhamento ao que é a melhor orientação dada por especialistas.

Um estudo publicado pela Unicamp sobre casos de ataques em escolas apontou que o primeiro ataque ocorreu em 2002. Desde então, verificaram-se 22 ocorrências, tendo 13 delas ocorrido nos últimos dois anos. Trata-se de um aumento vertiginoso, abrupto e triste que, em larga medida, comunga da ausência de regulação das redes sociais com objetivo de impedir a disseminação destes conteúdos. Nota-se, nesse contexto, que apesar de se tratar de grande minoria dos casos, mais de uma plataforma no Brasil não limitam conteúdos que façam apologia a ataques a escolas[2].

Mas a ampla disseminação de alguns tipos conteúdos, não se limita a casos de ataque a escolas. Existem outras situações – igualmente criminosas – que causam enorme repulsa social, decorrente do total desprezo a princípios básicos de humanidade, que também deveriam ser limitados. Casos como esse carecem de alguma resposta imediata, não devendo haver uma postura inerte das plataformas no sentido de aguardar decisão judicial determinando a sua remoção. Casos em que a conduta é claramente contrária ao senso comum devem ser imediatamente retirados, assim que se tomar conhecimento desse fato.

Nesse contexto, no último dia 17, o Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO) determinou que plataformas como Twitter, Instagram e Facebook apagassem as fotos do cadáver da falecida cantora Marília Mendonça, que haviam sido publicizadas na semana anterior à da decisão. Relembre-se que a disponibilização das fotos é uma ofensa criminal – vilipêndio ao cadáver, crime previsto no artigo 212 do Código Penal[3], [4].

Nota-se que, em ambos os casos, usuários de plataformas digitais, no intuito de obterem fama – situação cada vez mais comum – ignoram os danos psicológicos que causam à família da vítima e à sociedade, única e exclusivamente com a finalidade de ganhar “curtidas” em seus posts da rede social. Pode-se questionar o que os acontecimentos têm em comum além de períodos semelhantes. Ambos tiveram como elemento indutor as redes sociais e a ampla publicidade conferida por ela para os conteúdos criminosos que são gerados por terceiros.

Na audiência pública realizada no STF em março, os representantes das plataformas apontaram a dificuldade em vedar certos conteúdos porque alguns deles seriam dotados de intensa subjetividade, encontrando-se assim em uma zona cinzenta[5]. Tal ponto, inclusive, parece ser acertado e merece um debate mais amplo do ponto de vista regulatório.

É necessário que a regulação enderece, de forma célere, os casos que claramente contrariem valores comuns e universais da sociedade, e que independam de ideologia ou visão de governo. É urgente que debatamos e incluamos tais preocupações no PL 2630/2020. Não parece razoável que se entenda admissível a perpetuação de práticas criminosas, sem que aqueles que a publicizam, e monetizam tais atividades, não tenham qualquer responsabilidade sobre sua atividade empresarial. Devemos, nesse contexto, nos desprender de argumentos que ancorem sua irresponsabilidade no direito à liberdade de expressão e analisarmos as limitações que já foram feitas a esse princípio, o que pode ser valoroso para se estabelecer pontos comuns no debate.

Tanto nos casos de instigação a massacres como no ato de vilipêndio à cantora sertaneja, as publicações contrariavam, de forma gritante, o ordenamento jurídico brasileiro, mas nada foi feito até que houvesse uma decisão judicial a respeito. Mas não é só, tais condutas violam noções básicas de humanidade, civilização e desenvolvimento social. Violam requisitos básicos de respeito ao próximo, independentemente de credo, orientação política ou qualquer forma de ideologia. Essas situações merecem remédio imediato, para que outros indivíduos não se sintam incentivados e contagiados pela prática.

Roga-se, nesse aspecto, que a regulação das plataformas se inicie de pontos comuns, que devam desde já ser limitados, seja por meio de determinação governamental, seja por uma atitude responsiva e autorregulatória das plataformas digitais, no sentido de evitar a proliferação desse peste, evitando-se assim o contágio que é causado na era das redes sociais, como bem aponta Frazão (2023)[6].

Para analisar o aumento no número de denúncias de massacres em escolas devemos traçar correlação com o contágio social. Um exemplo é o Efeito Werther[7], que se trata de um fenômeno psicológico que se refere à imitação de comportamentos suicidas decorrente da divulgação pública do ato. O efeito pode ocorrer quando a mídia noticia detalhes de um suicídio, dando ampla visibilidade ao ato e gerando assim uma onda de imitação em pessoas vulneráveis e/ou com tendências suicidas.

No caso em questão, uma explicação adequada seria o que foi denominado de Efeito Columbine[8]. A divulgação ampla, detalhada e descuidada feita pelas redes sociais pode inspirar outros indivíduos com ideais semelhantes a adotarem tais comportamentos. Isto ocorre porque agressores em potencial acabam sendo expostos a conteúdos violentos e a grupos vinculados a comportamentos extremistas, favorecendo a formação de comunidades virtuais voltadas a tais práticas.

Estudo publicado na revista Journal of School Violence, em 2021, apontou a existência de correlação entre a exposição a conteúdos violentos na internet e o risco de comportamentos violentos entre adolescentes, principalmente em caso de púberes com problemas de saúde mental[9] (DECAMP et al., 2021).

Inegável que as redes sociais têm um papel importante na disseminação de informações, mas a ausência de medidas por parte de algumas poucas permite a disseminação rápida e ampla de conteúdos que podem ser extremamente prejudiciais sobre jovens e adolescentes vulneráveis, que podem acabar se contagiando e agindo de forma semelhante.

Cabe apontar ainda estudo publicado no Journal of Interpersonal Violence[10] em 2020 em que se analisou a influência da mídia tradicional e das redes sociais no aumento de massacres em escolas. Os pesquisadores concluíram que a disseminação de informações sobre ataques anteriores, por meio de redes sociais, tende a aumentar a probabilidade de novos ataques, sobretudo com relação a indivíduos vulneráveis que buscam atenção e notoriedade (WILSON et al., 2020).

No caso Marília Mendonça, mais uma vez vemos a negligência de algumas poucas plataformas digitais quanto à divulgação de conteúdos explicitamente criminosos. Paradoxal o tuíte de 2019 no qual a cantora comentou o vazamento de dados pessoais: “Dá medo até de morrer, porque as pessoas não respeitam nem esse momento e conhecemos casos parecidos”. Triste ter de admitir que os medos apontados tenham se tornado realidade.

Assim como no livro A redoma de vidro, de Sylvia Plath, a internet pode ser caracterizada como uma redoma digital. Somos sufocados por uma quantidade massiva de publicações nocivas que afetam nosso psicológico. A redoma digital não conhece as águas do Lete: o tempo não as consome e o dano se perpetua. Expressar-se, de fato, é um direito fundamental, mas, em sociedade, liberdade não se cogita como uma arma a ser empunhada contra os cidadãos.


[1]
Dentre as medidas adotadas, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, em parceria com SaferNet Brasil, criou um canal para recebimento de informações de ameaças e ataques contra as escolas.

[2]
Vide:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/04/25/nova-rede-social-apologia-violencia-escolas.htm
e
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2023/04/11/mpf-twitter-violencia-nas-escolas.htm
. Acesso em 25 de abril de 2023.

[3]
BRASIL. Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
. Acesso em: 21 abr. 2023.

[4]
Destaca-se que jurisprudência internacional tem se posicionado favoravelmente à responsabilização das redes sociais em casos de vilipêndio ao cadáver
6
. Tanto na divulgação de conteúdos extremistas que estimulem a prática de massacres quanto na publicação de conteúdos vilipendiosos, verifica-se evidente violação aos direitos humanos. Ainda em 2011, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, em sua Observação Geral 34, apontou que os Estados devem adotar medidas aptas a garantir que os provedores de serviços de internet e as plataformas de mídia social respeitem os direitos humanos, incluindo o direito à dignidade da pessoa humana (ONU, 2011). ONU. Comitê de Direitos Humanos. Observação Geral 34: Artigo 19: Liberdade de opinião e de expressão. 2011. Disponível em:
https://www.refworld.org/docid/4ecba0f62.html
. Acesso em: 24 abr. 2023.

[5]
Sobre este tema, já tivemos a oportunidade de escrever sobre:
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/se-a-mentira-vem-por-carta-a-culpa-e-do-carteiro-depende-da-mentira-11042023
.

[6]

https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/o-efeito-contagio-na-era-das-redes-sociais-e-os-ataques-em-escolas-19042023

[7]
Termo originado a partir da obra “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe. No livro, personagem principal comete suicido e a obra influenciou diversos jovens europeus a cometerem o ato.

[8]
Em referência ao tiroteio na escola Columbine, ocorrido Estados Unidos em 1999.

[9]
DECAMP, Wendi; BUSZKIEWICZ, Jason; STADER, David L.; COOK, Philip.
Violent Online Content Exposure and Adolescent Violence: A Multimethod Approach
. Journal of School Violence, v. 20, n. 1, p. 1-18, 2021.

[10]
WILSON, Lisa C.; SINGH, Jasmyn; STRETESKY, Paul. Media, social media, and school shootings: A systematic review of literature. Journal of Interpersonal Violence, v. 35, n. 7-8, p. 1443-1463, 2020.

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