O plenário da Câmara dos Deputados aprovou entre 6 e 7 de julho o substitutivo do relator Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) à PEC 45/2019, a reforma tributária. Os textos apresentados pelo deputado desde o dia 22 de junho foram alvos de intensas críticas dos profissionais do Direito Tributário. Na verdade, mesmo o texto original, de autoria do deputado Baleia Rossi (MDB-SP) sob a concepção técnica do economista Bernard Appy, foi alvo de crítica constante. A maioria das objeções, de fato, eram relevantes e pertinentes tecnicamente. Mas boa parte delas foi decorrente de uma aparente frustração carregada por nós tributaristas: a lei tributária não é feita pelos doutores, mas pelos eleitos.
Essa frustração não é de hoje: a Assembleia Constituinte escolheu não adotar os anteprojetos de constituição de notáveis da Comissão Afonso Arinos e do IPEA para o sistema tributário de 1988. Ainda assim, indiscutivelmente os fundamentos do sistema da Carta de 88 duram até agora, ironicamente com ferrenhos defensores da sua manutenção.
A despeito das críticas, pertinentes ou não, a atual reforma é a mais avançada em termos de trâmite legislativo dos últimos 50 anos. Na Constituinte de 1988 foi ensaiada a criação de um IVA, que concentraria nos estados e Distrito Federal a tributação de mercadorias e serviços. Mas essa tentativa naufragou na Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição de Receitas, que separou o ICMS e o ISS, mantendo em grande medida o modelo da Emenda Constitucional 18/1965.
Já nos primeiros governos pós-Constituição, Collor e Itamar, foram alinhadas pelo Executivo propostas de reforma tributária natimortas. Em 1995, foi proposta a PEC 175/1995 pelo governo FHC, a “Reforma Mussa Demes”, em referência ao seu relator, que foi aprovada em substitutivo da Comissão Especial, mas não votada no plenário. Foram também tentadas reformas amplas nos dois primeiros governos Lula, as reformas Virgílio Guimarães e Sandro Mabel, seus relatores, que também não chegaram à votação no plenário.
A atual reforma tributária foi aprovada por impressionantes 382 votos no plenário da Câmara. Esse fato é notável por várias razões. Uma delas é que é a primeira vez que a Câmara aprova uma reforma tributária estrutural em um regime democrático. A Emenda Constitucional 18/1965, antecessora nesse aspecto, foi aprovada em um regime repressivo.
Outra delas é que consenso sobre a reforma tributária envolve o equacionamento de vários conflitos: contribuinte x fisco; estados x União; estados x municípios; serviços x indústria x agro; além dos interesses específicos de cada setor econômico e segmento social. Sobre este último, chama atenção a intensa participação da Bancada Feminina na discussão da reforma, na defesa de temas específicos das mulheres. Ante tantos conflitos, é de impressionar o grau de consenso alcançado inclusive com os estados, especialmente com uma manifestação expressa e participação ativa do governador de São Paulo a favor da proposição. Trata-se de um alinhamento estelar político sem precedentes na área fiscal.
Mais importante que divagar sobre o ineditismo da situação, contudo, é perguntar: e agora?
Agora a reforma vai ao Senado. Como Casa da Federação, dificilmente o Senado deixará a proposta passar sem alteração. Temas como o Conselho Federativo, o Fundo de Desenvolvimento Regional, a Zona Franca de Manaus e os diversos regimes especiais de IBS/CBS devem ser alvo de grande debate. Estes, inclusive, tendem a ser ampliados.
Justiça seja feita: ter algumas dezenas de regimes especiais nacionais de IBS/CBS, embora seja uma situação que se afasta da perfeição técnica, é bem melhor que ter centenas de regimes especiais regionais de ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins. Não bastasse esse argumento, a existência desses regimes especiais é essencial para gerar um consenso político mínimo para aprovação da reforma. Sem alíquotas reduzidas para serviços de saúde e educação, por exemplo, haveria grande resistência da classe média, segmento social de ampla ressonância no Congresso.
Após a aprovação pelo Senado e nova apreciação pela Câmara, caso haja as quase certas alterações senatoriais, fica pendente a aprovação da Lei Complementar do IBS/CBS, que deverá ser sancionada até 2025. Essa Lei Complementar é essencial por duas razões.
Primeiro, porque será ela que dará verdadeira estrutura – fatos geradores, contribuintes, mecanismos de gestão – aos novos tributos e ao Conselho Federativo. A feitura dessa lei será o verdadeiro “chão de fábrica” do novo sistema.
Segundo, porque a PEC está cheia de “compromissos dilatórios”: soluções de conflitos que não foram possíveis na PEC foram “prorrogadas” para a discussão do Projeto de Lei Complementar (PLP). Ao firmar compromissos dilatórios, o parlamento coloca certas questões em maior grau de concretude, o que pode facilitar sua solução, visto que são mais claros e imediatos os interesses e óbices envolvidos na questão. A deliberação parlamentar em sede de PLP também reduz bastante o quórom de aprovação: de 308 para 257, na Câmara, e de 49 para 41, no Senado.
Inclusive, a Lei Complementar é passível de veto pelo Poder Executivo federal, que terá maior influência na negociação. Na verdade, é possível que o próprio Conselho Federativo, caso instituído antes da Lei Complementar do IBS/CBS, seja um protagonista da discussão e até autor da proposição.
Por fim, depois de tudo aprovado no Congresso, começa o verdadeiro desafio: a transição e gestão do novo sistema. Esses processos exigirão uma articulação sem precedentes da Federação. Curiosamente, algumas das críticas mais vorazes à reforma têm a ver com uma suposta extinção do federalismo. Talvez morra o federalismo canibal que vigorou por bons anos no Brasil na área tributária, sobretudo no que diz respeito ao ICMS, mas talvez se aprimore o federalismo cooperativo que foi o verdadeiro desejo da Assembleia Constituinte de 1988.
Espero que nesta fase nós, tributaristas, possamos superar nossas frustrações e contribuir – seja na academia ou na lida diária – com a construção de um sistema tributário melhor para o povo brasileiro.